Os robôs também erram? É bom começar a se acostumar com essa ideia. Robôs cada vez mais autônomos e inteligentes já fazem e vão crescentemente fazer parte do nosso dia a dia. Mas não se trata aqui de robôs industriais, com braços mecânicos programados para apertar parafusos. Imagine robôs que cuidam de idosos e de pessoas doentes, que fazem tarefas cada vez mais sofisticadas e que interagem com humanos reproduzindo emoções.
Livros, filmes e séries constantemente exploram situações envolvendo o relacionamento entre robôs e humanos. Metrópolis, Blade Runner, Ex Machina e WestWorld são alguns títulos que podem vir à mente. Só que esses exemplos estão cada vez mais distantes das páginas de ficção científica e mais próximos de aplicações cotidianas.
Trata-se, grande parte das vezes, de uma relação desigual. Robôs foram criados por pessoas. Sendo assim, tudo o que a máquina faz seria mera execução de comandos e programação prévia. Todavia, quanto mais complexas são as soluções apresentadas pelas máquinas para os dilemas com os quais elas são confrontadas, é de se esperar que o Direito avance também para buscar compreender o que são robôs inteligentes e como o ordenamento jurídico deve reagir à sua atuação.
Teriam os robôs direitos próprios? Seriam eles dotados de personalidade jurídica? No início de 2017, o Parlamento Europeu adotou uma Resolução com recomendações sobre regras de Direito Civil e Robótica. O texto aponta para a necessidade de se regular o desenvolvimento de robôs autônomos e inteligentes, com a – até certo ponto surpreendente – recomendação de que se crie uma espécie de personalidade jurídica para tais robôs.
A leitura do estudo que serviu de base para a Resolução do Parlamento revela como aspectos ligados à responsabilidade civil foram relevantes para a adoção da medida proposta. Os danos decorrentes do desenvolvimento de carros autônomos e outros robôs inteligentes serviram de ponto de partida para o questionamento: quem responde quando um robô causa um dano?
Responderia a empresa que fabricou o robô ou aquela responsável por sua programação? E, se o robô for utilizado por uma terceira empresa, que celebra contrato diretamente com o consumidor, não seria melhor que esta fosse a responsável?
A solução aventada pelo Parlamento Europeu seria criar uma espécie de personalidade jurídica para o robô em si, chamada por vezes de “e-personality” ou “personalidade eletrônica”. O nome não ajuda, mas ele ao menos aproxima o debate sobre a personalidade jurídica dos robôs inteligentes daquele já enfrentado em outras situações pelos mais diversos ordenamentos jurídicos.
Por que o ordenamento jurídico confere personalidade? Ao lado das pessoas físicas, que naturalmente a possuem, é comum encontrar situações em que o ordenamento confere a diversos entes uma personalidade jurídica autônoma. Pessoas jurídicas das mais distintas (sociedades, associações e fundações) são os melhores exemplos. Se o ordenamento jurídico confere personalidade jurídica à fundação, resultante do destacamento de um patrimônio, por que não conferiria a um robô inteligente?
Vale questionar, de início, se a solução de se conceder uma personalidade jurídica seria mesmo a resposta adequada. No cenário europeu, impulsionado por indagações sobre responsabilidade, a questão da personalidade aparece muito mais ligada à construção de um mecanismo de reparação à vítima de danos do que como resultado de uma discussão mais aprofundada sobre o que é um robô inteligente e seu estatuto jurídico de forma mais abrangente.
Não parece que criar uma personalidade jurídica autônoma seja a única (e quiçá a melhor) forma de direcionar a questão dos danos causados por robôs inteligentes. Quem vai gerir o patrimônio do robô? Um seguro amplo não seria uma forma mais eficiente para amparar a vítima do que criar uma nova categoria de pessoas jurídicas?
A resolução do Parlamento europeu chega então a mencionar duas iniciativas relacionadas ao desenvolvimento de robôs inteligentes: (i) a adoção de um registro obrigatório desses robôs; e (ii) a criação de um seguro que possa então fazer frente às hipóteses de danos causados pelos mesmos.
São assim questões estritamente patrimoniais que levam à criação da figura da personalidade jurídica dos robôs. Também foram levadas em consideração as questões patrimoniais para a criação de pessoas jurídicas. Todavia, diferente do que ocorre com essas últimas entidades, robôs inteligentes são capazes de desenvolver uma interação especial com humanos. Diferente das fundações, por exemplo, que não possuem materialidade, os robôs inteligentes, na definição do Parlamento Europeu, precisam ter presença física. Não necessariamente essa representação física reproduzirá traços humanos, mas a interação com um robô material (e não simplesmente com uma voz programada) cria uma série de novas situações.
Uma delas, por exemplo, são os robôs cuidadores, especializados no acompanhamento de pessoas idosas ou enfermas. Existirá um direito a não ser tratado ou cuidado por um robô? Esse questionamento começa no eventual desconforto com a companhia não humana, mas certamente atinge inquietações urgentes quanto mais avança a formação de diagnósticos realizados por inteligência artificial.
A doutrina de Direito Civil está acostumada a tratar os animais como coisas. Na classificação de bens semoventes geralmente são inseridos todos os animais. Mas o que dizer da recente evolução no tratamento do tema na França e em Portugal, que transformaram os animais em “seres sensíveis”, à luz de suas respectivas legislações? Se animais foram destacados da categoria de bens para ocupar uma nova posição, o mesmo raciocínio poderia ser aplicado aos robôs inteligentes?
Uma outra particularidade, bastante natural, parece tornar ainda mais complexo o debate sobre a personalidade jurídica dos robôs: sexo. A ascensão dos robôs sexuais tem gerado uma discussão sobre como esses robôs reproduziriam situações que apenas reforçariam conceitos sobre o papel da mulher na sociedade e ideias de subordinação.
O debate sobre robôs inteligentes cada vez mais importa para o Direito. Conceder à máquina uma personalidade jurídica autônoma, nem que seja para dotar a mesma de patrimônio para compensar eventuais danos, é uma solução que desponta seriamente no horizonte. Todavia, é importante ir além da dinâmica da responsabilidade civil e investigar o que significa dotar robôs inteligentes de personalidade à luz do ordenamento jurídico.
Questionar a natureza dos relacionamentos humanos curiosamente é um caminho que leva a compreender o futuro dos robôs. Esse debate, como visto, vai além da simples dinâmica da responsabilidade civil. Errar é humano, mas o que fazer quando também for robótico?
CARLOS AFFONSO SOUZA* é Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da PUC-Rio. Doutor em Direito Civil pela Uerj. Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio). Pesquisador afiliado ao Information Society Project da Faculdade de Direito da Universidade de Yale. Advogado.